DOS LIVROS. 10

27-05-2014 11:12

Sobre o mestre e o discípulo, entrevista conduzida por um anónimo

J: Durante o congresso que se realizou no Ateneu Comercial do Porto sobre Álvaro Ribeiro, v. afirmou que ninguém se podia dizer discípulo do filósofo, porque, sendo o mestre quem escolhe o discípulo, não há qualquer declaração de Álvaro Ribeiro que prove que ele tenha escolhido alguém. Eu sinto que naquela afirmação sua se envolvem problemas mais fundos ou escondidos, no quadro das relações, do ponto de vista não digo pessoal mas doutrinal, entre os que se dizem discípulo do filósofo portuense. Ficou patente durante o congresso que eles não formam um corpo homogéneo.

T: O que eu pretendi pôr em questão foi a relação mestre-discípulo, coisa que entendeu muito bem o Paulo Borges. Tal relação não tem, na obra de Álvaro Ribeiro, o peso que tem, por exemplo, na de José Marinho. Como é praticada no Oriente, o discípulo deve ao guru completa submissão e obediência. É o caso mais conhecido. Mas não é só no Oriente que isso acontece. Pratica-se o mesmo tipo de relação nas tarikas muçulmanas, entre os cabalistas hebreus e, entre nós, na Companhia de Jesus, onde o mestre recebe o nome de guia espiritual. Você que é jovem conhece certamente os livros de Carlos Castañeda, onde a recepção do ensino de D. Juan é conseguida à custa da mais completa escravidão da alma. O que porventura ignorará é que esses livros dão a forma idealizada do ensino duríssimo ministrado nas escolas criadas por Gurdjieff.

Aquilo que eu, de facto, pretendi significar com a minha intervenção no Porto é que tal relação nunca existiu nem existe no grupo de filosofia portuguesa.

 

J: Eduardo Lourenço, no entanto, não deixa de atribuir a Álvaro Ribeiro a função de guru no grupo. E vimos, no congresso, Afonso Botelho, que também lá andou e anda, privilegiar a relação mestre-discípulo.

T: Eu não creio que Afonso Botelho a veja como a viu Eduardo Lourenço. Pelo menos, está mais bem informado. Veja só! No grupo da filosofia portuguesa havia dois mestres. Era um grupo com dois mestres, Álvaro Ribeiro e José Marinho. Como qualquer pessoa pode verificar lendo o que o primeiro escreveu sobre o segundo em Cisão e Indecisão na Casa Portuguesa, estavam longe de pensar o mesmo, de conceber a filosofia do mesmo modo, embora olhassem para a mesma estrela. Logo isto anula à partida a calúnia de Eduardo Lourenço.

 

J: Acha que é uma calúnia dizer que Álvaro Ribeiro era o guru do grupo? Se, em vez de guru, tivesse dito guia espiritual já não havia calúnia?

T: Meu caro amigo, a filosofia portuguesa ensina a liberdade e não a submissão e a obediência, seja a homens seja a ideologias. Eu admito que por amor de Deus uma pessoa se deixe escravizar por um mestre que diz conhecer o caminho, mas gosto mais de pensar que Deus prefira os homens e as mulheres que o servem livremente. Sabe por que é que no grupo de filosofia portuguesa se privilegia o pensamento sobre os outros modos de mediação? É porque só se pode pensar individualmente. Ali, nunca soubemos o que era trabalhar em grupo.

 

J: Não havia uma tertúlia?

T: “A tertúlia é o lugar onde sopra o Espírito Santo, quando se reúnem homens de boa vontade.” Conhece esta frase de Álvaro Ribeiro? Acha que há, na tertúlia, assim concebida, qualquer semelhança com o trabalho de grupo? Acha que o Espírito Santo é o promotor da servidão a um líder ou a um grupo?

Na vida, meu caro amigo, só há uma forma de alegria sem mácula, é a de ser pelo espírito.

 

J: Como é, então, possível falar num grupo de filosofia portuguesa se ele é formado por indivíduos que nada têm em comum?

T: Eu não disse que não tínhamos nada de comum, o que se pode inferir das minhas palavras é que tínhamos em comum o amor da diferença. Nesse sentido, podemos todos dizer-nos discípulos de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Eles também tinham isso de comum.

A relação humana que Álvaro Ribeiro mais privilegia é a do homem e da mulher. Por isso considerava o oaristo a forma superior de diálogo. Em geral, a relação entre o homem e a mulher não é olhada com bons olhos pelos partidários da relação mestre-discípulo. Até para amar, o discípulo ou a discípula têm de pedir licença ao mestre. V. conhece sem dúvida, a doutrina que tem a energia sexual e a energia espiritual como duas formas da mesma energia. Por isso mesmo, o guia espiritual julga-se no direito de controlar a energia sexual do discípulo.   

 

J: Falou em oaristo. É a primeira vez que ouço a palavra.

T: Nunca leu Eugénio de Castro? Tem um livro com esse nome.

 

J: Vou procurar.

T: O oaristo é o diálogo entre os amantes e, sobretudo, a forma que ele assume entre duas almas que procuram conhecer-se na intimidade misteriosa onde se gera a vida. A palavra mais banal tem uma infinidade de sentidos e, no entanto, significa uma só coisa ou uma só ideia.

 

J: Pareceu-me admitir há pouco não haver diferença entre a relação mestre-discípulo e a relação mestre-discípula. Mas esta última relação não corre o perigo de se transformar numa relação entre dois amantes?

T: Deveria fazer essa pergunta aos partidários desse tipo humano de relação. Álvaro Ribeiro também pensou na hipocrisia de um ensino que, dizendo-se espiritual, tantas vezes decai numa relação infra-animal, isto é, em que as almas não estão ali para nada. É a razão porque afirma que o amor só se realiza integralmente pelo casamento, pela vida em comum na mesma casa. Incapaz de compreender o subtil alcance desta proposição, há logo quem o acuse de retrógrado e de reaccionário. Há também as almas românticas que não vêem como se possa trazer da natureza para casa a forma suprema do oaristo que é o Cântico dos Cânticos de Salomão.

 

J: O senhor julga-se um génio? Alguém que não precisa de mestre?

T: Não veio entrevistar-me para me insultar…

 

J: Perdoe-me. Não tinha a intenção de ofendê-lo. Pensei uma série de perguntas e esta é uma delas que me parece, ainda por cima, vir na corrente. Nada mais. Mas considera um insulto perguntar-lhe se se julga um génio?

T: Não há nenhum homem que seja um génio. Os génios pertencem a uma categoria diferente da humana. É a existência dos génios e de outros seres espirituais que permite haver artistas inspirados. Incluo na classe dos artistas inspirados também os homens de ciência. Digo isto porque, quando se fala em inspiração, supõe-se em geral que há nessa ideia qualquer coisa de poético e até de irreal incompatível com o exercício sóbrio e austero da razão.

Sampaio Bruno, nas Notas do Exílio, escreve umas linhas bem interessantes sobre o assunto.

 

J: O que é que ele diz?

T: Tenho o livro à mão. Sei exactamente a página. Quer ouvir?

 

J: Sem dúvida.

T: «Para mim, o processo de ideação da descoberta passa por três instantes, bem particularisticamente categorizáveis.»

«O primeiro consome-se na aquisição do problema, no seu conhecimento, na sua relacionação com os elementos conexos, na sua proporcionação com os lemas da ciência geral.»

«O segundo é o da explosão na consciência, por isso, genial, de uma ideia que talvez resolva a dificuldade.»

«O terceiro é o da ulterior verificação desta presunção. Aí vem examinar se os fenómenos conhecidos se comportam dentro da ideia concebida.»

E mais adiante:

«A primeira e a terceira destas fases mentais não exorbitam da mera intelectualidade, a segunda é a região monopolizada pelo génio.»

 

J: Julgo apreender a relação entre esse texto e o que me disse há pouco sobre a inspiração. Mas o senhor, ao combater a relação mestre-discípulo, não deixa ao acaso o progredir da ciência e a operatividade da ciência e a operatividade poética ou filosófica?

T: Sem aprendizagem, e séria aprendizagem, não é possível o primeiro momento analisado por Bruno. Ele não é só necessário em ciência. Há também o que lhe corresponde em poesia, por exemplo.

Eu não combato a relação mestre-discípulo a não ser quando ela assume a forma de dono e cão. Prefiro os gatos, como o Agostinho da Silva. “Os cães, disse ele, vão para onde a gente os manda; os gatos vão e vêm como querem e quando querem.” É evidente que o homem precisa de aprender com os outros homens, aprender sobretudo a saber estar disponível. É sempre bom que tenhamos alguém acima de nós. Leva-nos a olhar na direcção do céu.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)