INÉDITOS. 10

02-05-2014 09:29

87 ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

No dia do 87.º aniversário de António Telmo, oferecemos aos nossos leitores um impressionante dactiloscrito inédito do filósofo sobre a pequena vila de Arruda dos Vinhos, terra das suas primeiras grandes memórias e lugar decisivo na formação do homem e do pensador. O comentário é de Pedro Martins.

 

Arruda[1]

 

Começo a lembrar-me de mim em Arruda. É uma terra dos arredores de Lisboa, formada de ruas estreitas, atravessadas de um a outro lado por uma rua mais larga, de alcatrão, à qual, como em quase todas as nossas vilas, se chama rua Direita. Está rodeada de montes, mas os declives são suaves, cobertos de vinhedos, com algumas manchas de searas. A rua Direita sobe com algumas curvas desde a Quinta da Ponte, que se me representa como um largo portão, desde um rio, que para mim sempre foi maior que o Tejo do livro de Geografia, desde uma ponte que passa por cima do rio, até ao jardim, pequeno e bem tratado, cheio de sombras e árvores, – acácias, freixos, álamos e outras de que não sei os nomes –, até ao campo da feira, todo cruzado por fileiras de plátanos, até à praça de touros, redonda e encarnada, com grandes portas em forma de ferradura e pequenas bilheteiras de um e de outro lado da porta principal, por onde enfiávamos as pedras lestas das fisgas.

Naquelas ruas, cheias de medos e becos, brincávamos aos polícias e ladrões logo que anoitecia. O resto do dia por aí fora (havia tantas férias nesse tempo!) passávamo-lo no adro da Igreja a jogar o pião ou o botão ou a malha ou o berlinde, conforme a estação do ano, mas eu preferia matar toutinegras nas duas grandes pimenteiras tão altas que quase tocavam na torre, onde havia um grande sino de bronze escuro, que não soava só para baptizados, casamentos e enterros, soava também quando nos entretínhamos a atirar-lhe pedradas. Saíamos muitas vezes para o campo, em grupos de dois, e três, e quatro a roubar fruta, a caçar pássaros, a procurar ninhos. No tempo do figo lampo, passávamos tardes inteiras na sombra gelada e febril da árvore de Judas, espiando com olhos atentos o saltitar das flosas entre as folhas largas como mãos. Eu ia poucas vezes sozinho. O silêncio do campo fazia-me pânico. Ainda não tinha lido os filósofos alemães e não podia saber que era a minha própria presença que me apavorava. Procurava os lugares da ribeira onde brotassem juncos e malmequeres; tinham um aspecto de jardim e de família que me tranquilizava e esconjurava os sátiros. À noite, antes de me deitar, e conforme reza a história de todas as crianças, uma criada meio vesga, alta e magra, muito feia, contava-me contos de lobishomens. Ia para a cama cheio de terror, puxava o cobertor por cima da cabeça e suava suores frios muito tempo antes de adormecer. Havia na vila um lojista, o sr. Matos, de quem se dizia que era lobishomem. Íamos até lá e, enquanto aviava os fregueses, púnhamo-nos a olhar-lhe para as mãos a ver se descobríamos calos nos nós dos dedos. Tinha as mãos fortes e cara de cavalo. Sem respeito pela etimologia, a pobre mulher dizia que lobishomens eram homens que, de noite, se transformavam em burros. O sr. Matos não era bem lobo nem bem burro, mas tinha qualquer coisa dos dois por ter cara de cavalo. Anos mais tarde, encontrei-o em Lisboa numa esplanada, conversámos, recordando Arruda, como dois bons burgueses, e, apesar de o ter ali a falar comigo na mais clara língua de gente, não resisti à tentação de lhe investigar nas mãos sinais daquela tara sobrenatural.

 

[…][2]

 

Outra coisa que não posso esquecer foi que, ao chegar pela manhã à escola com os olhos inchados, certamente por uma picada de insecto, apanhei da professora, D. Maria Teotónio Guadalupe (como a primeira professora é importante e também o seu nome!), que deve ter interpretado o inchaço como resultado de uma briga. E que fosse uma briga, meu Deus?

A ideia que se faz da infância como de um paraíso na vida não é tão certa quanto rezam os livros, pelo menos se a minha pode servir de exemplo. Vivia num mundo hostil, povoado de medos. Tremia ao ouvir o trovão, enquanto o meu Pai se sentava a um canto da sala, muito quieto, envolvido numa manta, e mandava fechar todas as janelas. Ouvia falar do comunismo e da guerra, como de uma ameaça terrível, como de uma nuvem negra pejada de coriscos. Uma noite estávamos na sala e tínhamos visitas, as do costume, – o médico e um lavrador chamado Vaz Monteiro –. De repente, a criada irrompeu por ali dentro, gritando: – Uma grande Luz no Céu, Senhor Doutor! Saímos todos em tropel, atrás da criada que nos encaminhou para a varanda da cozinha. Era uma aurora boreal! Estávamos todos contemplando em silêncio aquela poeira de fogo, quando se ouviu alguém dizer: – É a Guerra! O meu coração maravilhado fez-se pequenino como uma espiga.

 

*  *  *

           

Mais tarde, vim a atribuir esta obsessiva sensação de instabilidade interior, que nunca mais me deixou pela vida adiante, não à minha infância, (e como à minha infância, se a criança que fui a vejo, lembrando-a, como vejo qualquer outra criança exterior a mim?), mas à carga de atavismo judaico que transporto comigo. Nos meus tempos de menino em Arruda, os outros rapazes chamavam-me o Chinês. (…)

 

[*  *  *]

 

 

À volta da vila, havia várias ribeiras, a que chamávamos rios. Havia o rio da Ponte, de que já falei; o rio da Verruga, com a sua água feita das fezes amalgamadas da população, mas tão fresco e tão sombrio nas tardes de verão e com tantos pássaros, por causa da sombra e dos insectos amantes dos dejectos, que para nós era o mais belo rio do mundo; o rio da Pipa, sabe-se lá hoje porquê Pipa!, com um largo caminho sempre ao lado e entre um e outro uma fileira de choupos e eucaliptos todos inclinados para um lado; o rio da Fresca, estreito e cavado fundo entre vinhedos, todo cheio de curvas, cotovelos e silvas, por cujas margens era uma aventura ir em fila indiana, todos os sentidos atentos ao surgir dos lagartos, das cobras e das ratazanas. Seguindo o curso dos rios, percorríamos todo o arredor. Só não subíamos para o lado da Quinta de São Sebastião, onde morava a Bruxa, numa casinha branca a meia encosta entre a vila e a quinta. Contava-se entre os garotos que um homem vinha descendo, uma noite, um pouco depois da casa e uma sombra se lhe atravessou no caminho e não o deixava passar.

– Mas uma sombra de quê? Uma sombra duma árvore? Perguntava eu.

– Uma Sombra. Não sabes o que é uma Sombra? Respondia o Malicos.

Malicos era o rei do adro. Todos nós o temíamos. Não costumava acompanhar-nos nas nossas excursões ao campo, onde se sentia em situação de inferioridade nos combates contra os pássaros. Também era dos piores nos jogos, mas aí obrigava-nos a jogar com ele até ganhar e fazia batota. Uma vez que o meu berlinde estava a um palmo do dele e eu jogava a matar, disse para mim:

– Tira-te daí que quem joga por ti sou eu.

– Mas tu não podes jogar por mim.

– Porque não? Não é o mesmo?

– Não, não é o mesmo. As tuas mãos não são as minhas nem os teus olhos são os meus olhos. Tu erras de propósito e se queres jogar por mim, então joga sozinho.

Eu estava revoltado e quase capaz de perder o medo, nem que tivesse de ir para casa com os olhos pisados de murros. Jogávamos com abafadores e o vencido perderia o seu. O meu abafador tinha umas cores muito lindas.

– Já te disse que te tirasses daí. – Empurrou-me para o lado e abaixando-se atirou devagarinho o meu. Meteu os dois berlindes no bolso, andou uns passos, tirou-os outra vez de lá, e fê-los brilhar ao sol saltando-lhe nas mãos. Eu estava pálido, não fazia um movimento, mas com qualquer coisa em mim sinistra se estabelecia um terrível pacto de vingança.

Malicos era baixo, mais forte do que qualquer de nós e tinha um pescoço grosso. Tinha cara de homem com treze anos. A tudo quanto dizíamos para fazer valer os nossos direitos respondia sempre: “Isso não interessa”. Das crianças que brincavam no adro, creio que não havia uma que não lhe desejasse a morte.

Malicos acamaradava com Lucas. Pela época em que se passou o roubo do abafador, Lucas tinha perdido o seu prestígio entre os rapazes, um prestígio de natureza mágica que lhe adviera de ser capaz de cortar um arame com os dentes. Era um cobarde. Malicos também certamente, mas a cobardia não estava à flor da pele como em Lucas. Nunca ninguém se atreveu a responder à sua agressividade com a agressividade e pôde chegar a homem temido por todos. Lucas, porém, era frágil como um caniço e tinha uma cabeça grande de chimpanzé com os seus terríveis dentes. Entre os trapos que o vestiam, parecia estar sempre a tremer de frio. Depois que lhe perdemos o medo e o fizemos fugir à frente das pedras e dos murros, passou a andar sempre com Malicos. No tirano veem os cobardes aquele dos seus capaz de estabelecer uma situação de domínio sobre os humildes, inteligentes e corajosos.

Todos os rapazes da vila passavam pelo adro a brincar, excepto um: o filho do Mário das Galinhas. Como o pai, vivia à margem da sociedade. Às vezes, víamos passar os dois em cima da carroça puxada por uma mula. A casa deles ficava por trás da minha, mas levantava-se um grande muro entre os dois quintais e só uma vez trepando ao telhado consegui entrever uma mulher, de certo a mãe do rapazito, a despejar numa sardinheira um balde de água. O Mário das Galinhas era o herói da vila para todos nós, que o procurávamos imitar roubando fruta nos pomares e botões na caixa de costura. Era um homem de cinquenta anos; ao pé do filho, que rodava pela nossa idade, parecia mais avô que pai. Lembro-me de um rosto de ave de rapina cheio de rugas, calado, triste e austero, por baixo dum boné cinzento, e com um bigode grisalho, muito bem tratado como o de meu pai. O filho era gordo e corado, com umas pernas brancas e moles, e tinha um olhar inexpressivo, apagado e doce como o dos bovinos. Uma tarde de outono, [em] que eu e outro rapaz regressávamos pelo rio da Ponte de uma caçada aos pássaros, vimos a carroça parada junto ao muro da Quinta do Tonicas. O rapazito estava em cima da carroça e ia recolhendo as maçãs que o pai lhe passava por cima do muro. Nem sequer olharam para nós, quando nos cruzámos por eles. Faziam aquilo sem pressa, com naturalidade e indiferença, como se a fruta fosse deles e estivessem a apanhar o que era seu.

Este encontro quebrou parte do encanto que em mim despertava o ladrão de galinhas. Os meus roubos de maçãs tinham muito mais emoção e muito mais risco. Nessa mesma tarde, tínhamos limpado dezenas de pêssegos nas barbas do proprietário, que a vinte metros de distância tratava a sua horta e não via o vai-vem contínuo dum bracito saindo dum canavial na margem da ribeira.

O Mário das Galinhas, dias depois, fez vibrar a vila com uma proeza extraordinária. Foi em Vila Franca, terra onde não era tão conhecido. Pelas onze horas da noite, alguém que passava reconheceu a sua carroça junto a um celeiro. Correu a avisar a polícia, tanto mais que reparara estar a porta entreaberta. Juntou-se ali muita gente, mas a polícia quando entrou viu que havia uma abertura no telhado por onde o ratoneiro se escapulira. Subiram para os telhados, distribuíram-se pelas ruas próximas, mas foi em balde que o procuraram. De repente alguém gritou: – A carroça desapareceu! Tranquilamente, Mário esperou que não estivesse ninguém à porta, saiu de sob o trigo onde se escondera e tomou um rumo desconhecido. Durante alguns meses não foi mais visto em Arruda. Dizia-se que estava em Runa.          

– Eh pá, vocês sabem uma coisa? – Dizia-nos o Asdrúbal, a mim e a mais três rapazes. – O Mário das Galinhas já aí está outra vez.

– Viste-o?

– Não vi, mas estava o meu pai a dizer isso a um amigo.

Estávamos no adro e anoitecia. Passavam bandos de pardais para o lado dos freixos do rio da Verruga. Os guinchos voavam em grandes curvas, soltando sons estrídulos. Duas mulheres conversavam ao pé das pimenteiras. O sacristão passou por nós assobiando e entrou para a igreja. O Asdrúbal morava numa das casas que circundavam o adro. A mãe chamou-o da janela. Dois dos rapazes partiram com ele. Eu fiquei com o José Mantas, sentados os dois num recanto do adro sobre um pequeno banco de pedra. Era o meu habitual companheiro de caça e a nossa conversa girava, como sempre, em torno de atiradeiras e pardais. Puxou-me pela manga da camisola e fez-me sinal com o olhar para o lado das pimenteiras. As mulheres já não estavam lá, mas junto ao muro da igreja vi duas pequenas sombras deslizando com cautela que, daí a instantes, se sumiram pela porta da igreja que o sacristão deixara aberta.

– Viste quem era? Perguntou-me o Mantas num sussurro.

– Um deles pareceu-me o Malicos.

– Claro que era o Malicos mais o Cunha. Que é que achas que eles vão ali fazer?

– Sei lá! O sacristão está lá dentro.

– Eu não percebo é por que iam a esconder-se, os tunantes.

Calámo-nos e pusemo-nos a espiar. Pressentíamos qualquer coisa, não sabíamos o quê e os nossos corações sentiam-se bater.

– Se a gente fosse lá ver? Disse eu, mas o Mantas puxou-me outra vez pela camisola. Desta vez era o sacristão que saía. Era já noite fechada e só lhe distinguíamos o vulto. Ouvimos a grande chave girar com estalos na fechadura. Malicos e Lucas tinham ficado lá dentro fechados. Quando o sacristão passava na nossa frente, com a chave suspensa numa das mãos, pensámos ao mesmo tempo ir dizer-lhe, mas foi ainda o Mantas que, desistindo, me segurou pelo braço:

– Fica quieto! Não te mexas! Pôs o dedo indicador a prumo sobre a boca.

O homem recomeçou a assobiar e pudemos assim segui-lo até que o som se perdeu na distância.    

– Ouve! – disse-me o Mantas – Vais jantar, não é? Sais esta noite?

– Esta noite não posso. Tenho lição com o meu Pai.

– Que chatice, mas não tem importância. Amanhã pela manhãzinha, oito e picos, está bem?

encontramo-nos aqui. E não digas nada lá em casa. Parece-me que adivinho o que os bandidos foram ali fazer. Agora vamos!  

 

*  *  *

 

 

O prior da Arruda, padre José Lopes, era, como se está mesmo a ver, uma das figuras familiares da rapaziada do adro, que o via passar a horas certas do relógio, marcadas pelas horas dos ofícios: fora das horas dos ofícios, ou caturrava com os republicanos da farmácia ou andava a apanhar espargos nos caminhos trilhados pelas cabras. Calcorreava terreno que nem um demónio este velho de forte arcabouço, não tivesse ele sido o maior caçador da região, enquanto a vista voava mais que a perdiz e os braços eram mais velozes que o ziguezaguear da lebre. Nas horas certas em que passava pelo adro, lá ia pesado e trôpego, mas rijo, resmungando qualquer coisa que nos parecia latim. Nunca nos fazia festas, nunca nos dirigia a palavra: sabíamos, contudo, que gostava de nós. Quando me confessei por ocasião da minha primeira comunhão, mandou-me embora sem me deixar abrir a boca: – Vai-te! Tu não tens pecados.

Na verdade, olhávamo-lo com respeito, não por ser padre, mas por termos ouvido dizer que dez anos atrás não havia na redondeza melhor atirador de perdizes. Havia um mês que o tinha vindo substituir um homem novo, enquanto ele se não restabelecesse duma operação aos órgãos genitais a que o submeteram em Lisboa. A Igreja tinha agora uma frequência mais assídua de senhoras, mas o padre parecia-nos maricas, com o seu passinho curto a atravessar o adro e aquele jogar do corpo dentro da sotaina. Punha-nos a mão na cabeça e fazia-nos perguntas sobre os nossos pais, os nossos estudos, os nossos deveres religiosos. À sua volta, parecíamos um coro de anjos, um círculo barroco de cabeças morenas com dois grandes rios de ranho jorrando dos narizes. Aconteceu algumas vezes que, logo que voltava costas e entrava na Igreja, era um tal chover de pedradas no sino da torre que todas as mulheres vinham às janelas e o sapateiro do canto deixava de bater na tripeça, abrindo a boca num grande sorriso alvar de satisfação anticlerical. O padre vinha de dentro e encontrava o adro deserto. Das esquinas mais distantes víamo-lo esguio e cómico no meio do portal, a fazer muitos gestos, num jeito de espantalho ou de artista de circo capaz de fazer rir os santos nos altares.

Quando eu e o Mantas, na manhã seguinte, chegámos ao adro, a porta da Igreja estava aberta. Entrámos. Os bancos estavam cheios de mulheres que assistiam à missa, enquanto o padre fazia gestos silenciosos, se curvava, se benzia, umas vezes de costas, outras vezes de frente, e lia num grande livro posto sobre o altar. Deste livro dizia o professor Lança na escola que tinha as letras assim tão grandes por ter sido escrito para analfabetos. A Igreja cheirava a papéis velhos. Eu não gostava do cheiro da Igreja, mas ficava fascinado a olhar os vitrais e aquela misteriosa transformação da luz. Havia um silêncio, um andar nas pontas dos pés como se estivesse ali alguém muito doente, que nos fazia olhar para todos os lados à procura de qualquer coisa de invisível; todavia, se alguém tossia começavam todos a fazer o mesmo e era um rascar de escarros nas gargantas por entre o qual o rito continuava a celebrar-se imperturbável. O Mantas tinha-se apercebido, antes de mim, que a tosse era contagiosa. De outras vezes ali tinha ido, acompanhado de alguns de nós, e, escondendo-se atrás duma coluna, escolhia um momento de perfeito silêncio para tossir; logo, uma aqui, outra ali, as mulheres começavam a tossir também e tínhamos de sair à pressa para fora para poder rir à vontade até chorar. Nesses momentos, enquanto a tosse se propagava e os rapazes começavam a não serem capazes de suster o riso, parecia-me que, pelos rostos dos santos alinhados dum e doutro lado da Igreja, passava uma expressão severa.

Naquela manhã, procurávamos com os olhos o Lucas e o Malicos.

– Foi pena termos chegado já com a Igreja aberta. – Sussurrou-me ao ouvido o companheiro. E, de repente, tendo uma ideia que lhe iluminou o olhar: – Anda cá para fora!   

– É o seguinte. – Disse-me na porta. – Como se arranjaram eles com as famílias para passar a noite na rua? Vem daí! Vamos a casa do Lucas.

A mãe do rapaz disse-nos que o filho não estava, que tinha passado a noite na casa do Malicos. Fomos a casa do Malicos e a mãe deste deu-nos análoga resposta, que o filho não estava, que tinha passado a noite na casa do Lucas.

Um vento frio fustigava a vila. Dentro de casa estava-se bem. Uma criança olhava para a rua por detrás dos vidros da janela. À porta da taverna do Matias, um grupo de homens, embuçados em capotes, conversavam de mãos nos bolsos. Uma camioneta de carga vinha descendo lentamente com um chiar de travões que irritava os ouvidos. Por detrás vinha correndo um  homem com uma grande caixa cúbica suspensa nas costas por correias, toda pintada de branco. Parou em frente do grupo e gritou:

– Esquimó fresquinho!

Os homens riram-se: – Eh moço! Isso aquece a gente?

Mas em cima a janela da criança abriu-se e uma mulher fez sinal ao vendedor de gelados: – Que subisse as escadas!

– Esta gente rica! Disse um dos homens. – Quando é que um filho meu comeria esquimós por um tempo destes? Não sabem o que hão-de fazer ao dinheiro.

Um rapazinho puxou-o pelo capote. Tinha uma expressão espantada e tremia com frio, embora levasse uma camisola de malha, levantada até ao pescoço.

– Não viram por aqui o rapaz dos esquimós?

O homem manteve-se de costas voltadas, enquanto os outros riam. Ficou calado e sério uns instantes e por fim informou sem olhar para a criança:

– Está aí dentro. Deve estar a sair.

Começou a chuviscar. O homem voltou-se:

– Olha lá, gaiato! Que danado de gosto é esse de querer comer gelados com um frio destes?

O outro encolheu os ombros e preparava-se talvez para responder quando surgiu o vendedor de esquimós.

– Quatro. – Disse o rapazito, mostrando quatro dedos levantados.

Abalou a correr rua abaixo com os gelados nas mãos. De dentro da taverna, donde vinha um som surdo de vozes e se ouviam estalar sobre a mesa pedras de dominó, alguém disse para fora, interpelando o grupo:

– É o filho do Mário das Galinhas.

Voltaram-se todos procurando o miúdo com os olhos, mas este já havia desaparecido.

– Filho do Mário das Galinhas. E como está bem vestido o diacho!

– Logo quatro gelados. Aquilo era um para ele, outro para o pai e outro para a mulher.

– O quarto para as galinhas (…)    

 

 

António Telmo

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 Comentário

Pedro Martins

 

1. Na obra de António Telmo, nos livros que escreveu, nas entrevistas que concedeu, são várias, porventura abundantes, as referências que o filósofo faz a Arruda dos Vinhos, pequena vila da antiga província da Estremadura, incrustada no limiar indeciso que separa o Ribatejo do Oeste, onde, durante cerca de uma década (após o seu regresso de Moçâmedes, Angola, em 1933, e até à partida para Sesimbra, em 1943), completou a infância e viveu boa parte da juventude. Ali cumprirá com distinção o ensino primário e encetará, como autodidacta (na verdade, não deixará nunca de o ser), a aprendizagem liceal em regime de ensino doméstico, a que seu pai empresta uma tutela branda, mas vigilante.

Antes de mais, tenham-se presentes as páginas, com diversos laivos autobiográficos, de “Os Dioscuros”, narrativa inaugural dos Contos, onde os gémeos protagonistas, Tiago e Túlio, nascem e crescem em Arruda. Ainda neste livro, mas noutro escrito – o extraordinário depoimento intitulado “Trabalho de Grupo” –, deparamos com uma importante revelação de autobiografia espiritual, espacialmente referida ao velho burgo arrudense:

 

    O meu pai foi o meu primeiro Mestre e envolveu o melhor da sua força na forma do filho primogénito. Com efeito, por volta dos meus quinze anos, meu irmão mais velho, que viria a tornar-se famoso como Orlando Vitorino, conheceu o José Marinho e o Álvaro Ribeiro. Por seu intermédio, fui agraciado com a leitura de um livro que decidiu de toda a minha vida espiritual: Literatura e Ocultismo de Denis Saurat.

    É um estudo de poetas ocultistas (William Blake, Milton, etc.), que pretende mostrar a influência na sua obra da Kabbalah. Mas o que me acordou para a ciência do mistério foram os textos do Zohar no fim do volume que o autor selecionou para ilustrar o seu ponto de vista.

 

Tudo isto se dá ainda em Arruda dos Vinhos. José Marinho, impedido pelo Estado Novo de continuar a ensinar nas escolas públicas, ganhara renome como explicador de filosofia. António Diniz Victorino, pai de Telmo e Orlando, solicitou o concurso eficaz do seu prestígio no apoio ao filho mais velho, que pretendia ingressar na licenciatura de Histórico-Filosóficas. Então amiúde se deslocou Marinho à Arruda, onde tomava as refeições com a família Victorino, para habilitar cabalmente o filósofo a haver. O sucedido teve consequências já sabidas: preparou o ingresso de Orlando Vitorino e António Telmo no círculo que ao seu redor, e de Álvaro Ribeiro, se desenhava já, com impressionante vigor, nas tertúlias filosóficas dos cafés lisboetas.

Proporcionada por Orlando, também a descoberta do francês Denis Saurat se revela decisiva na formação de Telmo. À margem das evidências, e para bem avaliarmos a sua importância na formação deste último, bastará considerar que, em apontamento autobiográfico manuscrito que se guarda no seu espólio, o filósofo afirma ter ido para a Universidade de Brasília para ensinar – precisamente – “literatura e ocultismo”.

Fora já em Arruda que uma outra, análoga, descoberta se lhe oferecera à vocação, conforme António Telmo revela na entrevista que, em 1998, concedeu à revista LER – Livros e Leitores:

 

    Eu vivia em Arruda dos Vinhos, e na biblioteca municipal havia uns livros. Um dia, tinha eu dez anos, apanhei um que se chamava Ciências Ocultas, e o que me maravilhou nele foi que, entre muitas outras coisas que lá havia e que eu não percebia, se dizia uma coisa espantosa: que nas nuvens se podia ler o destino. Isso impressionou-me muito, e eu passei a ir para o campo, deitar-me de barriga para o ar a ver passar as nuvens e a ver se era capaz de ler o meu destino. Nunca fui capaz, mas aquela beleza das nuvens impressionou-me e ficou a fazer parte de mim. É aí que nasce tudo, é nesse impulso que começa a minha tendência para estes temas.

 

São afirmações inequívocas, estas; e ilustram definitivamente a seminal, fundamental importância da década de Arruda na formação do futuro filósofo e hermeneuta. E é ainda na pequena vila estremenha que outras leituras – as dos grandes poetas portugueses – se vão insinuando na alma do jovem Telmo, consoante o próprio, já perto do fim da vida, nos revela, a instâncias de Henrique Manuel S. Pereira, na entrevista destinada ao volume À Volta de Junqueiro – vida, obra e pensamento:

 

    Tem presente a época e circunstância em que “descobriu” Guerra Junqueiro?

    Descobri Guerra Junqueiro quando comecei a compreender aquilo que lia. Por volta dos meus treze anos. Nesse tempo, não havia televisão, que veio corromper as noites em família. Jogávamos, conversávamos, líamos. O meu Pai era monárquico e bom cristão. Em jovem, tinha batalhado no movimento do Integralismo Lusitano do António Sardinha e tinha sido preso. Eu e os meus irmãos (éramos três, o António, o Rui e o Orlando, por ordem ascendente das idades) gostávamos de ver a fotografia do nosso pai no Talassa, ali onde se elogiava a actividade monárquica que o levou à prisão. Por esses tempos, também o Agostinho da Silva andava pelo Integralismo Lusitano. Este meu grande Amigo e meu pai devem ter-se conhecido. Ora acontecia que, na pequena biblioteca literária do meu pai (era jurista), só quase havia livros de republicanos anticlericais. É o que acontece hoje com os anticomunistas: todos têm na sua estante, em lugar de honra, o Saramago e o Lobo Antunes.

    Arrisco dizer que um desses livros era A Velhice do Padre Eterno

    Sim, era, e com os Sonetos de Antero de Quental e com o do António Nobre apaixonei-me pela beleza da nossa língua. Lia e relia, nesses serões provincianos de Arruda dos Vinhos, A Velhice do Padre Eterno, mas desse livro só se me imprimiram na memória para toda a vida os dois versos com que começa um dos poucos em que Guerra Junqueiro não ataca o clero: “Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa, / Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti”. Também eu orava ajoelhado ao pé de minha mãe, que me ensinou a traçar sobre a minha fronte, sobre a minha boca, sobre o meu peito o sinal da cruz, fazendo-me acompanhar os três movimentos do polegar com estas palavras: “Pelo sinal da Santa Cruz/Livre-nos Deus Nosso Senhor / Dos nossos inimigos.”

 

2. A par dos livros, e dos enigmas que neles há, um outro, maior segredo irá interpelar António Telmo: o que se encerra – já que de Junqueiro e d’A Velhice do Padre Eterno (nela inclusos os versos tremendos de O Melro) se vem de falar – nessa “verdadeira Bíblia” de olor franciscano que o grande livro da Natureza contém. São na aparência felizes os anos por si levados em Arruda numa vida ao ar livre, na roda do rapazio: ora no adro da igreja, à sombra do portal manuelino, sugestivo e inspirador; ora à solta nos campos, entre montes e vales permeados pelo assomo copioso das ribeiras: incessante sucessão de jogos, aventuras e partidas em que, por entre as hastes da fisga exímia, desponta já o futuro – e enfim repeso – caçador que Telmo também foi. O excerto de um apontamento tardio, trazido a lume nas Congeminações de um Neopitagórico, constitui-se como o testemunho autêntico do que se acaba de afirmar:

 

    Fazendo por pensar e escrever com a mesma inocência com que vivia o rapazinho de calções armado de fisga; não deixar, por excesso de humildade, de pensar e escrever o que me vai sendo dado como o rio que corre ou o vento sopra. E, cada vez mais, estar retirado do mundo no meu canto provinciano, onde o 666 e as suas manobras se esquecem de atingir-me.

    Vem cá amanhã o Pedro Sinde, vem do Norte ao Sul para conversar. Estou muito contente por termos mais uma vez ocasião de caçarmos juntos ideias com um prazer análogo ao que eu sentia a caçar pássaros com o Mantas pelos campos da Arruda dos Vinhos.

    Mas a dor dos pássaros feridos de morte brada contra mim do outro mundo, de um mundo que é outro mas que está na minha alma. Hoje deixei de caçar, tomado de remorsos. As ideias caçam-se? Aristóteles viu bem quando comparou a filosofia à altanaria? Não somos nós que somos caçados por elas? Não são as ideias aves resplandecentes de luz que uma vez pousadas na árvore do nosso ser íntimo afastam dele todas as aves nocturnas, tenebrosas, inquietantes como o próprio remorso?

 

Bem se vê que tudo lhe começa na Arruda: até o contacto ingénuo com o subconsciente hebraico, que lhe será críptico atavismo, posto a par de um certo fundo anticlerical, ressumado da herança renascente de Bruno e Pascoaes, que será depois também a sua. Ainda num outro apontamento dado à estampa nas Congeminações, conta-nos António Telmo:

 

    Quando eu era criança, por volta dos treze anos, no adro da igreja, em Arruda dos Vinhos, ouvi dizer a um companheiro de brincadeira, no dia de Todos os Santos, que São Tiago só chegava no dia seguinte, porque era coxo. E o rapaz acrescentava, fazendo-me olhar para o céu estrelado, que a poeira luminosa da Estrada de Santiago que, na escola, nos ensinavam ser a Via Láctea, era levantada pelo pé do Santo, arrastando-o enquanto ia ficando mais longe dos outros.

    Sei hoje que São Tiago é o mesmo que São Jacob, aquele que lutou com o Anjo e saiu da luta, que venceu, a coxear. Compreendo agora que o rapaz, falando por tradição, o fazia coxo.

    O que aprendi naquele adro da igreja com os seus arraiais e a sucessão e jogos que jogávamos misteriosamente ordenada como uma liturgia do tempo! Ali começou para todos nós, no domínio da sensação e da imaginação, a aprendizagem do que é a verdadeira liberdade. O filósofo José Marinho, julgo que num dos seus aforismos, se não o ouvi da sua própria boca, dizia: «O que eu amo nas igrejas é o adro».

 

3. Paródico, episódico, picaresco, porém tocado, aqui e ali, pela sombra juvenil do conhecimento do mal, o apreciável conjunto de laudas inéditas dactilografadas que António Telmo dedicou a Arruda parece bem ser o começo de um livro – mais um! – que o filósofo deixou por acabar, e que poderá ter sido lavrado no início dos anos setenta. Ainda assim, e não obstante o carácter algo precário do texto esboçado naquela que presumo ser a sua primeira, inconclusa versão, o que chegou até nós é francamente admirável, por nos patentear um prosador notabilíssimo, num registo estilístico surpreendente, que irá tomar outros rumos no desenvolvimento da obra télmica – compare-se, a este propósito, as páginas simples sobre Arruda dos Vinhos com a elaboração densamente refinada dos Contos do filósofo, de factura, segundo suponho, bem mais tardia.

Transportados para a Arruda pacata e remansosa das décadas de 30 e 40, deparamo-nos com uma escrita límpida, singela, saudável, sem mácula de pretensão, cujos processos descritivos, narrativos e dialogais se impõem com mestria ao prazer do leitor, numa textura de palavras corredias, escorreitas, portadoras de uma fluidez luminosa e, por isso, visual.

Indo muito além do que, nos apontamentos recenseados na obra publicada em vida, e aqui revisitados, nos deu a conhecer do mágico decénio vivido em Arruda, António Telmo, neste memorial melancólico e burlesco, mostra-nos como o germe embrionário da sua inteireza grandiosa logo emerge desse fértil período virginal. Ali encontramos, por via da lembrança, a audácia de uma irreverência travessa, também concretizada na transgressão do pequeno delito, a par do ensimesmamento introspectivo ante o embate do mal e da dor, em que a autognose indispensável à condição filosófica se prenuncia já…



[1] Título da responsabilidade do editor.

[2] António Telmo cortou, no dactiloscrito, a parte do texto que a seguir se transcreve:

 

«Mas o pior, em Arruda, era quando havia um enterro e o caixão entrava na Igreja para ser benzido pelo padre. Interrompiam-se os jogos e as brincadeiras. Esgueirávamo-nos por entre as pernas dos presentes e ficávamos à volta do caixão, a poucos palmos de um rosto lívido sem sangue, que nos gelava o nosso e se metia cá dentro como uma imagem nítida que transportávamos para os sonhos. Por detrás da vila, a uns quinhentos metros e passado o rio da Pipa, um rio que eu amava embora fosse formado dos dejectos da população, havia uma pequena, abrupta elevação, com uma cruz de pedra em cima: chamava-se o Alto da Forca. Só uma vez passei perto da cruz e, por mais que olhasse e reflectisse, não consegui compreender como ali se podiam ter enforcado homens.   

Uma manhã, vinha saindo da escola, uma velha casa de esquina na parte baixa da vila, e andara alguns metros para além da porta, rua Direita acima, quando um homem que estava do outro lado da rua se aproximou de mim e começou a bater-me. Nunca entendi isto, mas fiquei sempre marcado pelo medo que tive.»