INÉDITOS. 45

01-03-2015 19:11

No dia em que se completam 110 anos sobre o nascimento de Álvaro Ribeiro, mestre dos mestres de António Telmo, lembramos o filósofo da razão animada a partir de um inédito do discípulo que ilustra a sua relação com o mestre e ilumina um aspecto fundamental do pensamento alvarino, também na estreita ligação que o relaciona com Sampaio Bruno. Trata-se de escrito que irá figurar nas Páginas Autobiográficas de António Telmo, a segunda parte do III Volume das suas Obras Completas, cuja fixação de texto o Projecto António Telmo. Vida e Obra está a ultimar.

Os guizos[1]

 

O som de guizos dá uma nota de beleza ao que não pode entender-se senão como a manifestação de uma força do género daquelas que, no domínio das ciências ocultas, se designam por subtis. Os guizos põem-se suspensos do pescoço dos gatos para avisar da sua presença e mais facilmente os encontrarmos se tiverem desaparecido. Há instrumentos musicais, como a pandeireta por exemplo, que funcionam com guizos que não são mais, afinal, do que pequenos sinos de forma ligeiramente diferente. O som do sino limpava a atmosfera da aldeia de Fernando Pessoa e torna as almas claras, mas o gemido de uma sirene gera angústia e pavor.

O mundo subtil tem os seus aspectos macabros que os filmes de terror exploram, fazendo acompanhar de um som contínuo, cavo e opressivo a aparição, por exemplo, do fantasma do pai de Hamlet. Os fantasmas são pálidos como que formados de uma matéria gelatinosa. Imaginamos assim o reino dos mortos e damos graças a Deus de vivermos no esplendoroso mundo sensível, onde brilham o Sol e as estrelas. Só as almas doentes podem comprazer-se com as sessões de espiritismo.

Falei ao Álvaro Ribeiro o que me aconteceu na casa do alfaiate.

– Foi qualquer coisa que estava a mais e que deitou fora – disse-me ele e pôs-se a falar noutro assunto.

O filósofo de A Razão Animada só atribuía valor e realidade às expressões do sobrenatural pela literatura. A fenomenologia do mundo subtil que não passasse pela palavra mental, oral e escrita, isto é, pelo pensamento, tinha uma garantia até menor do que a fenomenologia do mundo sensível que ele tinha por irreal. Neste ponto, como noutros que com ele se associam, e por ele se coordenam, a coincidência com Sampaio Bruno é flagrante.

O autor de A Ideia de Deus só atribui insofismável realidade às comunicações angélicas formadas por palavras. Desdenha das sensações visuais cuja transcendentalidade é, segundo ele, manifestamente ilusória.

No entanto, as palavras iluminam porque fazem ver naquele domínio invisível que é o do pensamento. “Ver ou não ver, eis a questão.” O essencial é sempre a luz. A visão de Ezequiel é um esplendor. O som que se constitui como letra é uma modalidade da luz.

«O olho, ensinou Jesus, é a lâmpada do corpo. Se o olho é mau todo o corpo é treva, se é bom todo o corpo é luz.»

O cinzento é o que resulta, como as cinzas de um incêndio, da combustão das cores. Os fantasmas são as formas cinzentas do informe.

Ver é tudo. Mas este maravilhoso mundo coroado de azul é apenas uma imagem?

Não há imagem que não o seja de alguma coisa, isto é, que não imite. Ou imita outra imagem ou o que não é imagem e este é o caso das imagens cosmológicas e da natureza que se devem conceber numa árvore cujas raízes estão para além da imagem.

 

António Telmo    

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[1] Título da responsabilidade do editor. O episódio a que António Telmo alude vem narrado aqui.