UNIVERSO TÉLMICO. 10

15-04-2015 11:53

Testemunhos sobre Agostinho da Silva no centenário do seu nascimento*

António Reis Marques



Quis a Câmara Municipal de Sesimbra associar-se às comemorações do centenário do nascimento de Agostinho da Silva.

Em boa hora o fez, porquanto, ele foi um grande amigo desta terra, onde teve casa e gostava de permanecer e contactar com a sua gente.

Talvez por ser um dos poucos sobreviventes dos amigos que teve em Sesimbra, merecesse a honra do convite para vir dar-vos o testemunho da convivência que com ele tive o privilégio de manter, durante muitos anos.

Todavia, será mais em homenagem à sua memória, que tanto venero, que aqui me encontro, pois as minhas pobres palavras pouco ou nada poderão acrescentar ao lustre do muito que, no decurso deste ano, se tem dito e escrito sobre essa singular figura que marcou o século XX português.

Na tentativa, talvez vã, de superar limitações, decidi trazer-vos algumas breves recordações de aspectos da sua vida, comigo partilhadas, principalmente os relacionados com Sesimbra, para depois salientar particularidades do seu pensamento e, por fim, do seu ideal de liberdade.

Durante a sua permanência no Brasil, Agostinho da Silva criou, ou ajudou a criar, estabelecimentos de ensino universitário em algumas da suas cidades.

Quando falava disso, recordava sempre as dificuldades que enfrentava com as respectivas autoridades, as quais alegavam a inexistência de edifícios com a dimensão necessária para a respectiva instalação e funcionamento.

Nada de mais errado, contestava ele. Ao princípio, e tal como acontecia na velha Grécia, basta apenas que haja um mestre disponível e alguns alunos interessados, pois o resto virá depois.

Num país como este, de bom clima, poderá ser ao ar livre, sob uma árvore frondosa, à beira de um rio ou no recanto de um parque, que poderão sentar-se os discípulos a volta do mestre, para escutarem os seus ensinamentos e, sobre eles, reflectirem e fazerem perguntas.

E foi de facto assim, em regime ambulatório, sem burocracias ou preocupações administrativas, que ele iniciou o funcionamento de pequenos pólos de ensino, que mais tarde se tornariam em verdadeiras universidades.

Aponto esta interessante faceta da sua vida para revelar a intenção que teve de criar, na nossa terra, uma universidade aberta ou um centro de estudos sesimbrenses que, a título experimental, começaria por ser um curso de verão, cuja temática seria a vida de Sesimbra, nas suas principais vertentes, para o que havia até esboçado o respectivo programa. Recorrendo à memória e a excertos de cartas que me escreveu a esse propósito, pareceu-me de interesse referir aqui a súmula dos temas a leccionar, que depois seriam compilados e desenvolvidos para a publicação, que também preconizava, de uma espécie de compêndio de cultura geral sesimbrense.

Obviamente que, de acordo com a sua maneira de ser e agir, seria tudo muito prático, e as conversas, como ele gostava de dizer em vez de lições, seriam todas ao ar livre e em lugares emblemáticos da vida do concelho.

Permito-me abrir um parêntesis para recordar, que foi passeando nas alamedas do Campo Grande, em Lisboa, que ele deu as primeiras explicações ao Dr. Mário Soares, como este já teve oportunidade de referir, com a admiração que tinha pelo Professor.

A primeira conversa seria na Fortaleza de Santiago. É importante, dizia ele, começar ali em frente ao mar que é a matriz de Sesimbra, onde já se pescava ainda antes de Portugal existir.

Poderemos então falar da importância da nossa estreita plataforma ou planalto continental que, por ser estreita, traz por consequência que num espaço limitado, junto à costa, viva um maior número de espécies e de indivíduos de cada espécie.

Isso explica, a bem conhecida variedade e riqueza piscícola sesimbrense. É também por isso que a pesca se pode fazer em embarcações de pequeno porte, como está patente no elevado índice artesanal que caracteriza a faina marítima local.

Associada a esta actividade andou sempre outra com ela relacionada: a produção de sal.

Haverá então lugar para recordarmos a época da chamada “guerra do sal”, esse difícil período da história de Sesimbra, entre os séculos XV e XVI, por Setúbal ter embargado o fornecimento de sal para a conservação do pescado em salmoura, então tão necessário para o consumo público como para a exportação.

E só a pesca, fulcro da economia, com o tipicismo da vida dos seus pescadores, a variedade dos seus barcos e artes de pesca, e todas as actividades correlativas, como a construção naval e a cordoaria, passando pelo pitoresco do que foi a antiga lota, o desembarque e transporte do peixe, constitui motivação mais que suficiente não só para merecer várias conversas mas também para a criação, que idealizara, de uma instituição que expressamente se dedicasse ao seu estudo, investigação e divulgação.

A segunda conversa seria no Castelo, onde o amigo Rafael Monteiro, com o poder da sua vasta cultura, dissertaria sobre a história da sua terra, desde a origem até aos nossos dias.

Julgamos que teria até oportunidade de esclarecer e desenvolver a sua tese, de não ser aquele o primitivo castelo, mas outro mais a nascente, no lugar da “Meia Velha” ou “Ameia Velha”, perto do chamado Vale da Vitória onde, segundo a tradição, D. Afonso Henriques venceu as tropas do rei mouro de Badajoz.

A seguir iríamos à Lagoa de Albufeira, onde seria abordada a importância ecológica daquela zona húmida que terá sido, no início do quaternário, o lugar onde o Tejo se lançava no oceano para, no séc. XV, segundo os antigos mapas, ou portulanos, mostrar-se como uma reentrância da costa, aberta ao mar e, mais tarde, tornar-se então lagoa, como a conhecemos, por efeito da erosão que formou o cordão de dunas, separando-a do mar.

Por último, demandaríamos o Cabo Espichel, a finisterra d’Arrábida, rico no seu património geológico e histórico-religioso, onde vários factores se conjugaram para, desde a antiguidade, ser lugar privilegiado no campo do sobrenatural.

A força mística do lugar, transmitida pela grandiosidade da paisagem, feita de rochedos, ventos agrestes e os abismos marítimos que fazem sentir a pequenez da nossa dimensão será uma proposição aliciante para a visita ao Cabo e ao seu santuário.

O programa era mais vasto e diversificado, pois propunha como que a descoberta de Sesimbra para os sesimbrenses, criando-lhes uma forte identidade e um maior espírito de apego à vida do concelho.

Por vários motivos adversos, mas principalmente pela doença que o abateu, esta ideia não se realizou. Dela releva porém, aliado ao excelente nível de conhecimentos, o seu amor a Sesimbra, que dizia, e deixou escrito, ser uma das terras de que mais gostava, tanto na sua dimensão física como na humana.

Agostinho da Silva considerava-se cristão, e deixou escrito que aquilo a que chamava civilização cristã não existia e, por isso, era preciso construí-la.

Vivia pobre e, para ele, isso implicava não ter coisas, e gracejava dizendo, não ter sequer gente, pois tentar ser gente já dava muito que fazer.

Não se dar a si próprio, mas estar sempre ao serviço dos outros, em inteira disponibilidade, era também o que dizia e praticava.

 

Não aceitava que o chamassem de filósofo, pois na verdade era mais por S. Francisco de Assis do que por Aristóteles.

 

O franciscanismo era o seu modelo. Lembro-me de lhe ter ouvido, que na “Declaração Universal dos Direitos do Homem” se esqueceram de acrescentar o direito à pobreza.

Esclarecia porém, não se tratar da pobreza involuntária, resultante de fatalismo ou das desigualdades sociais, mas da que era assumida pelo despojamento dos bens materiais, pela sobriedade do viver, do vestir e do comer.

E essa sua maneira de ser e de estar na vida implicava ainda um dever: o de que a comunidade em que estamos inseridos receba sempre algo de nós próprios, estando cada um mais ao seu serviço do que esperando que ela o sirva.

E acrescentava a necessidade de uma cultura de deveres cívicos, de uma cidadania responsável – que infelizmente é muito frágil entre nós – e também de um espírito de tolerância no sentido de que “possa cada um ser o que realmente é, respeitando e entendendo o que os outros são, sobretudo aqueles que estejam em minoria de opinião”.

Sublinhava também que a pobreza, de que fizera modo de vida, já S. Francisco, que lhe chamara santa, tinha proclamado as suas virtudes, uma das quais é a liberdade.

E escandalizava aqueles que não o compreendiam, quando fazia a apologia do ócio e da necessidade de libertar o homem da servidão do trabalho, dado que a questão do trabalho não está em produzir bens essenciais, alimentos, vestuário e abrigo, pois na realidade o que todos procuram é produzir dinheiro, com o objectivo de o multiplicar e alcançar sempre mais e mais dinheiro.

O homem de hoje não usufrui da liberdade que apregoa, ou que lhe apregoam, porquanto está cada vez mais enleado na teia de várias servidões, submetido a novas formas de escravidão.

Produzem-se hoje cada vez mais bens, não essenciais à vida, mas apenas necessários ao sistema de mercado, lembrando a propósito o que ouvira ao seu amigo, António José Saraiva: “só escapando à sociedade mercantil pode o homem possuir-se verdadeiramente a si próprio e contribuir para inverter o ciclo infernal da mercantilização da vida”.

Por isso, pretendia que, em vez de se perder tanto tempo a definir e discutir capitalismo e socialismo, melhor seria que todos se empenhassem em abolir um sistema de produção que se alicerça no trabalho involuntário, ou forçado, da maior parte dos homens.

Com asserções como estas, que hoje se diriam politicamente incorrectas, não admira que houvesse quem o apelidasse de utópico, visionário ou sonhador.

Que seria porém da vida, onde parece que os valores estão a desaparecer, se não houvesse sonhadores como Agostinho da Silva?

Cabe aqui a lembrança do poeta quando falava “dos que não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida”.

Um dia fiquei surpreendido ao vê-lo desembarcar ali no terminal das carreiras, vindo de Lisboa, e manifestei-lhe a minha surpresa porquanto, e segundo tinha sido amplamente noticiado, era suposto encontrar-se àquela hora num acto oficial, onde seria condecorado com a “Ordem da Liberdade”, conjuntamente com outras individualidades.

Disse-me então, com aquela bonomia que lhe era peculiar: “Fui sempre, tanto quanto se pode ser, um homem livre! Assim, aqui estou eu em Sesimbra a usufruir da minha liberdade, pois só renunciei à condecoração com o seu nome.

De vários quadrantes há quem tenha pretendido usar-me como bandeira da revolução de Abril, cujos rumos se estão desviando dos propósitos proclamados.

É quase sempre assim, com as revoluções, e já o mesmo tinha acontecido a quando da implantação da República e todos sabemos das consequências.

A liberdade é um bem essencial que, tal como a saúde, só a avaliamos bem quando a perdemos.

A prática da famosa trilogia da revolução francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mais citada do que vivida, nunca foi dada aos homens senão parcelar e esporadicamente, e esses valores só fazem sentido na sua globalidade.

Vejamos o exemplo ainda recente das duas superpotências mundiais: os Estados Unidos d’América e a União Soviética.

Na América, há liberdade mas não há igualdade.

Na União Soviética havia igualdade mas não havia liberdade.

Tanto num caso, como no outro, foi esquecida a fraternidade, o espírito fraternal, próprio de irmãos, que poderia realmente estabelecer a harmonia entre os homens. E tudo porque, uma coisa tem falhado sempre: que o homem mude!

É bom que haja confronto de ideias, adversários e opositores, mas nunca inimigos dentro de uma comunidade nacional.

Tem sido sempre mais fácil mudar as instituições. Difícil, é mudar a natureza humana e isso ainda nenhuma doutrina ou revolução o conseguiu até hoje!”

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*Palestra proferida no Auditório Conde de Ferreira, em Sesimbra, em 17 de Setembro de 2006. Publicado em Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2014.