UNIVERSO TÉLMICO. 30

05-11-2015 23:23

Quem tem medo de Sampaio Bruno?

Pedro Martins

Provavelmente, este artigo de António Valdemar, dado à estampa no Público no passado dia 2, fez mais, junto do povo português, pela divulgação da vida e da obra de Sampaio Bruno, de quem por estes dias se comemora o centenário da morte, do que qualquer outra acção ou iniciativa de que há memória nas últimas décadas. Quantos, por qualquer forma, se reclamam do movimento da Filosofia Portuguesa, devem por isso estar-lhe gratos, com humildade e sem sectarismo.

Com humildade. Como convém, sempre que de um homem como Sampaio Bruno se fala. Isto o sabem quantos verdadeiramente passaram pelas mãos de um mestre. Ou pelas mãos de um verdadeiro mestre. No caso pessoal do compilador socialista-anarquista de O Brasil Mental, que de si mesmo confessa, n'A Ideia de Deus, nada mais ser do que um jacobino, nem sequer lhe foi necessário passar em loja pelas mãos dos mestres da Ordem Maçónica, cuja doutrina, de evidente origem judaica, demoradamente exalta nas páginas de O Encoberto, para saber que quem se humilha será exaltado e quem se exalta será humilhado.

Sem sectarismo. Podemos, aqui e ali, concordar com António Valdemar ou dele discordar. Mas não lhe devemos negar o talento vivo e telúrico de uma prosa ágil, sã e sábia. António Valdemar não se confunde com o cinzentismo servil do modo funcionário de viver.

Tem inteira razão António Valdemar ao reclamar ambiciosamente comemorações nacionais para Sampaio Bruno. Comemorações para o povo, com o povo, e que ao povo devolvam Bruno. O povo que, em cada momento, encarna o fluir da nação no chão da pátria. Pensará, por certo, Valdemar no envolvimento das estruturas administrativas, das principais instituições culturais do país, da comunicação social. E todos temos de reconhecer que a realidade presente se encontra ainda muito longe do que seria desejável.

Já este ano, a Biblioteca Nacional, instância de reconhecimento que representa a República, deu um importante contributo para as comemorações deste centenário brunino, com a realização de uma exposição bibliográfica e documental. Mas não poderemos exigir demasiado a uma instituição que, apesar das dificuldades com que se debate, continua a prestar aos seus leitores – hoje mesmo, ali trabalhando na investigação biográfica de António Telmo, o pude comprovar – um serviço de excelência. Nela se encontra sempre uma porta aberta às sinergias da boa vontade. Assim tem sido, por exemplo, com os Congressos que integram o triénio pascoalino; ou com as comemorações dos 250 anos do nascimento de Bocage, que por ali têm passado, exemplarmente promovidas pelo Centro de Estudos Bocageanos – e aqui será justo realçar o inexcedível entusiasmo de um fraterno amigo: Daniel Pires – e pela Câmara Municipal de Setúbal. A par das conferências e das exposições que, quer em Lisboa, quer em Setúbal, quer por esse mundo fora, começaram a ter lugar, importa salientar um impressionante esforço editorial, de parceria com a Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

Na verdade, a melhor forma de comemorar um autor é editá-lo, ou reeditá-lo. Sem isso, de pouco valerá estudá-lo e debatê-lo apressadamente em areópagos mais ou menos cerrados. Pessoalmente, tenho pena de que Sampaio Bruno e Álvaro Ribeiro não tenham tido, nos últimos anos, fortuna editorial idêntica à que Leonardo Coimbra e José Marinho conheceram. É óptimo que estes mereçam a edição de obras completas, é de lamentar que aqueles continuem parentes pobres. Tanto mais que Sampaio Bruno há muito caiu no domínio público e alguns dos seus títulos – casos de A Questão Religiosa ou Portugal e a Guerra das Nações – nunca foram reeditados desde o seu surgimento, há mais de cem anos! Não fora a acção patriótica de um Paulo Samuel ou de um Joaquim Domingues, e o panorama encontrado seria ainda bem pior.

Claro que não estranhamos o sacer esto que sobre Álvaro Ribeiro há muito se abateu, mormente na Universidade. E, no entanto, nenhum outro filósofo português melhor estudou, interpretou e difundiu o pensamento brunino, nenhum outro filósofo português tão fielmente o restituiu à sua verdadeira matriz: a da herança judaica da cultura portuguesa. Por Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro e António Telmo passa a catena aurea da kabbalah e do aristotelismo, ali onde esoterismo e exoterismo formam as partes do todo da filosofia portuguesa.

Está certa, nos tempos que correm, a preocupação de António Valdemar. Preocupação tanto mais razoável quanto as comemorações dos vinte anos da morte de um outro pensador português, Agostinho da Silva, este dotado de bem maior notoriedade junto do povo, só conheceram um princípio de expressão nacional, em 26 de Novembro de 2014, graças à actuação conjugada do Projecto António Telmo. Vida e Obra, do Centro de Estudos Bocageanos e da Biblioteca Nacional de Portugal.

No seu belo escrito da passada segunda-feira, lembra António Valdemar que por longo tempo se viu Sampaio Bruno, o único homem que, em Portugal, segundo Fernando Pessoa, mostrava compreender, impedido de ingressar na Academia das Ciências, ainda que esta, mais tarde, reparasse o erro, antes de abrir indiscriminadamente a porta a carreiristas intelectuais e oportunistas políticos. E isto por uma só razão: a falta de habilitações que só um curso universitário lhe proporcionaria.

Há muito que, no Porto, nos nossos dias, um homem vem trabalhando com denodo, rigor e paixão no inventário e na recolha dos dispersos de Sampaio Bruno. São milhares e milhares de páginas que morosa, pacientemente, por ele vêm sendo resgatadas. Tal como Bruno, não o credita um título académico. Tal como Bruno, não se põe em bicos de pés. Está destinado à glória humilde dos que se não confundem com os carreiristas intelectuais e os oportunistas políticos. Chama-se este homem simples, digno e generoso José Cardoso Marques e dá ao Projecto António Telmo. Vida e Obra a honra de o integrar. Estará connosco em Sesimbra, no próximo dia 28, na sala onde António Telmo fez a sua derradeira conferência. Connosco e com Bruno. Sempre.