VERDES ANOS. 15

04-09-2015 12:56

Ensino do Português e Latim[1]

 

No número de Novembro de 1952 deste Boletim, o amigo da língua portuguesa, Sr. Dr. Hernâni Dias da Silva, publicou um tão raro, entre nós, como notável e meritório breve estudo sobre os verbos auxiliares. Raro, notável e meritório pelos caminhos que toma e pelos resultados a que chega. Reconhece na nossa língua, além de «ter», «haver» e «ser», outros verbos auxiliares, os quais encerram acção futurível, segundo vários modos que atentamente discrimina. Surpreende-se o leitor ao verificar que, nas notas ao seu trabalho, o autor não utiliza exemplos extraídos da língua francesa, mas sempre compara com o inglês e o alemão; mas logo cai da sua surpresa ao reconsiderar que a lista gramatical dos verbos auxiliares, se tem permanecido limitada, é porque os linguistas têm insistido em elaborar a gramática portuguesa pelo modelo da francesa. É certo que, hoje, quase todos os linguistas reconhecem os malefícios do comércio idiomático com a França, mas, na sua maior parte, limitam-se a denunciar e combater o galicismo do morfema. No domínio da sintaxe, quanto à ordenação dos elementos fundamentais da oração, introduzem alguns o justo reparo de que constitui, quase sempre, um galicismo sintático a sequência «sujeito-predicado-complemento». De facto, se uma oração se relaciona com a ventura, como nomear a série «sujeito-predicado-complemento», já de si fechada, e em que o elemento médio é, na língua francesa, essencialmente tempo presente, visto como o que é perfeito, por definição, não seja futurante? Também a ordenação das preposições, no período francês, que é rectilínea disposição de sentenças rectas, não dá perspectivas, pois não resulta da interferência de planos diversos. O carácter dos elementos vem a participar do carácter do discurso. E assim o galicismo que mais importa combater é o estilístico, pois dele resulta o total anquilosamento e a inteira alienação da alma pensante.

Justamente, porém, se orgulham os Franceses do seu idioma. Na abundância de partículas concisas, na precisão do período, curto e claro, na composição enquadrante, exacta do discurso, tem o francês as condições necessárias de inigualável delineação de quadros descritivos. Mas não deixa de ser prematura e prejudicial a sujeição a seus moldes de qualquer outro idioma que, na imprecisão e no capricho, sinala irrealização de virtudes, se não exprime verdades indescriptíveis. Se a ordem lógica da verdade é outra, outra terá de ser a ordem verbal que a exprime. E assim a língua portuguesa, nos escritores seus verdadeiramente representativos, do latim herda a expressão das substâncias eternas e de si cria as relações pelas quais age no tempo futurante a eternidade das substâncias.

Os escritores genuínos da língua portuguesa mostram vincados vestígios de demo-rada convivência com a língua virgiliana. Pelo contrário, o jornalismo, formado pelos apressados escritores de «todos os dias», contempla, boquiaberto e sonambúlico, os mode-los que da França nos traz quotidianamente o Sud-Express.

 Aqui, porém, urge que paremos e reparemos.

Apontamos o mal que nos vem de ser a gramática portuguesa construída sobre a francesa. Paralelamente concorre para mal idêntico o ensino do latim, entre nós, pelo modelo do ensino do latim entre os franceses. No liceu, o ensino do latim é o ensino de o traduzir. Quem queira consultar a Traduction du Latin, de Marouzeau, ou quem rememore o método usado para levar a cabo uma tradução, verá como consiste em rectificar o labirinto sintático que o texto original oferece. Para tanto, importa, quanto ao período, colher primeiro a oração principal, e em seguida as coordenadas e as subordinadas; quanto à oração, encontrar o predicado, e em seguida o sujeito e os complementos. Posto cada termo no lugar que lhe cabe na construção sintática francesa, achada está a tradução. Deste modo, o latim, em vez de, como língua que é originante da nossa, nos possibilitar uma bela e original redacção do português, serve de instrumento para, com o idioma pátrio, escrevermos francês. Todos nós que um dia aprendemos latim nos surpreendemos a interrogar como se compreenderiam entre si os romanos, tal o hábito do pensamento sem curvas, simples e correntio. Métodos ingleses, todavia, abundam que ensinam a traduzir o latim sem saltos, à medida que se vai lendo, seguindo, embora com esforço, mas com surpresa e emoção, o curso labiríntico do pensamento. Consoante este processo de leitura, será depois, como é óbvio, a tradução redigida, e, o que mais importa, redigida consoante o português será, no momento em que o escritor defronta o próprio pensamento.

Estamos agora na ocasião propícia de sugerir que, no liceu, o ensino do português seja ministrado apenas pelos licenciados em filologia clássica. Mas para que a recta intenção não seja ludibriada, convém que o latim seja ensinado por método diferente do que vigora, método de acordo com as directrizes que sugerimos.

Em Les Nouvelles Littéraires de 6 de Novembro do corrente ano, lemos de Gabriel Marcel este apontamento: «Le problème de la traduction française en ce qui concerne Shakspeare doit être regardée comme à peu près insoluble. Bien sûr, on peut toujours retenir le sens, mais neuf fois sur dix la musique disparait». No mesmo número, Francis de Niormande, numa coluna dedicada, como de costume, à língua francesa, escreve: «Aucune erreur ne resiste à une phrase française bien faite; ou, plus exactement, il est impossible d'exprimer dans une phrase juste une pensée elle-même contrefaite. Cette épreuve est infaillible. Les ideologies plus ou moins fumeuses elaborées par des cerveaux mal équilibrés ne peuvent être dénoncées que dans un affreux jargon. Et les voilà jugés par le fait même». Estas duas citações, especialmente a segunda; vêm confirmar, ex ipsa origine, o que hemos dito. Consoante, em frases bem feitas, declara o jornalista francês, a sua língua é eminentemente disciplinar. Nela a razão encontrou o idioma próprio. E o fantasioso, desequilibrado Shakespeare logo se torna prosaico e sisudo, quando traduzido para francês. Não é admirativa a nossa subserviência à língua estranha. Mais do que isso, se não por inteiro, há o intuito agido de, à disciplina da língua que reúna as referidas condições, um povo imperfeito submeter, precisamente porque, porque imperfeito, busca na aventura da língua aquela remota palavra perdida que os lábios de Deus pronunciaram. Não o negamos. Na verdade, ao pensamento matemático nenhuma língua o exprime tão perfeitamente como a francesa. Língua perfeita, é, por isso mesmo, apta como nenhuma para as grandes sínteses historiográficas. Como nenhuma, é, por isso mesmo, tão inapta para a profecia.

 

António Telmo



[1] A Bem da Língua Portuguesa, ano IV, n.º 1, Lisboa, Jan. 1953, pp. 6-7.