VOZ PASSIVA. 45

24-03-2015 09:34

Católicos ateus?

Ruy Ventura

Cristo é, porém, mediador, está entre o mal e o bem, transforma o mal em bem,

porque a mediação realiza aquela síntese, aquele infinito aumento de ser,

 que é a garantia do nosso religioso optimismo.

Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar

 

 

"A utilização da língua para fazer o mal, pecando por palavras, é [...] obra de católicos ateus e digo ateus porque não poderá crer em Deus e no Senhor Jesus Cristo quem aplaude as atrocidades da Inquisição." Referia-se António Telmo, em Setembro de 2007, à transformação malévola do termo marrano - judeu convertido à força ao catolicismo - em marrão. O termo pode ser lido como vitupério dirigido àqueles que se dedicam ao estudo e à reflexão. Em tempos de monstruosidade inquisitorial era sobretudo o masculino de marrã, sinónimo de porco, desse animal humilde que Santo Antão do Deserto muito valorizou (ao ponto de se tornar no seu atributo iconográfico) como um dos símbolos do serviço cristão e até de Jesus Cristo, d' Aquele que se dá totalmente aos outros até na sua carne e no seu sangue, e que gente sem instrução nem dignidade transformou em sinónimo de sujidade e de infidelidade religiosa. (É mau sintoma quando um grupo humano desvaloriza assim o conhecimento, a humildade e a dádiva, invertendo-os e maculando-os…)

Terá sido obra de "católicos ateus" tal confusão deliberada? De cristãos não foi certamente e de crentes também não. E nem de católicos terá sido, se entendermos a catolicidade na sua vera acepção, outra maneira de afirmar e sublinhar a abertura universal e universalizante. Dizem que há duas realidades sem limites, o universo e a estupidez. Só em relação ao universo existem dúvidas... É, portanto, obra da estupidez a paronímia/sinonímia sinalizada por António Telmo Vitorino, estupidez que, de braço dado com a maldade, de vez em quando adopta as vestes do fundamentalismo tirânico e da servidão aos poderes políticos, económicos e sociais ilegítimos, mesmo quando envergam vestes religiosas. Obra de ateus? Pois claro... (Melhor seria chamar-lhes, contudo, anti-teístas...) Quem acredita num Deus misericordioso, como o cristão, não pode matar ou perseguir em seu nome.

Esta página télmica trouxe-me à memória algumas lembranças. A primeira diz respeito ao botas nascido em Santa Comba, que um dia se zangou com o cardeal Cerejeira quando este lutava pela consagração legal do descanso semanal ao domingo, à qual o ditador se opunha. Contava-me um secretário particular de D. Manuel Gonçalves, de quem fui amigo até à hora da morte (e cujo espólio guardo em parte na minha posse), que a zanga durou até ao falecimento de António de Oliveira Salazar e que o patriarca de Lisboa lhe dizia muitas vezes: "Sabe, padre João de Sousa, o senhor Presidente do Conselho é um homem muito católico... mas é ateu!" Ou seja, faltava-lhe a grandeza moral e a humildade intrínseca para ser verdadeiramente crente. E deu no que deu, para nossa desgraça colectiva. Perseguiu republicanos e monárquicos, anarquistas e comunistas, católicos e agnósticos, clérigos e leigos, bispos e sacerdotes... e a lista poderia continuar. Até Paiva Couceiro foi perseguido, segundo conta António Cândido Franco, num escrito recente que sublinha a grandeza moral e intelectual do escritor e professor da Universidade de Évora, de quem tive a honra de ser mestrando, pensador que, como os melhores, não confunde a história com a historiografia.

Do monárquico Paiva Couceiro contava meu bisavô Joaquim Francisco Pedro (um dos defensores de Chaves homenageados na avenida lisboeta) que poderia ter muitos defeitos, mas entre eles não se contava a baixeza moral nem a pequenez mental. Era essa a opinião de um pobre soldado do exército republicano, de quem guardo como relíquia a sua velha marmita militar. E corria, sem desvios, entre os seus companheiros de armas, entre aqueles que enterravam os pés nas margens do rio Tâmega, junto das nascentes cálidas da urbe flaviense, para não os verem congelados. Os tempos eram outros e nesses não estava ainda em desuso a palavra honra – essa "cal para caiar o universo", como escreveu um dia o filósofo Agostinho da Silva num bilhete que dele recebi.