DOS LIVROS. 43

09-06-2015 12:39

O albatroz

 

Tenho por verdade dividir a história de Sesimbra na era de Jesus em Antes do Albatroz e Depois do Albatroz. Albatroz ou alcatraz.

Explico-me. O primeiro morro que vemos à direita da povoação entrando pelo mar ainda hoje se chama o morro do Alcatraz. É que ali havia um pássaro desse nome que todos os anos aparecia. Elevava-se no espaço e mergulhava a pique no mar donde emergia instantes depois com um peixe capturado. Passávamos horas a assistir a este espectáculo.

Um ano depois deixou de vir. Já se sabe porquê. O mar não era o mesmo. Começava a pertencer aos turistas, às máquinas, aos mergulhadores, aos óleos derramados, à intoxicação.

Poderíamos também dividir a história da Sesimbra cristã em dois períodos, os mesmos que o albatroz marcou, num que acaba quando o pescador começa a saber nadar e noutro em que ele já entra na água seminu como qualquer gringo. A mim espantava-me que os homens do mar não soubessem, na sua generalidade, nadar e dizia-o ao Rafael Monteiro. «Também eu, respondia-me ele, não sei nadar e o mar é o meu domínio espiritual.»

Atrevo-me a imaginar por este modo: entrar nu no mar era como devassar as entranhas do corpo de um deus. E falo em entranhas porque, neste momento, o mar se me configura como um touro arremetendo impetuoso contra as rochas ou desfazendo-se na praia docemente como se seguisse a capa de um toureiro. A suprema arte marítima era cavalgar esse touro nos dias de tempestade.

O nome do nobre animal diz-se de duas maneiras: touro e toiro. Em touro o ditongo ou enrolado pelo r exprimirá o que há no animal de força negra, o instinto do sangue, a convulsão desse mesmo sangue obscuro, uma espécie de fogo fumoso comandando a violência da arremetida. Dizem-me que a composição química da água do mar é a mesma que a do sangue. Mais uma razão, a ser verdade, para vermos no mar um touro. Dizendo isto, recordo-me por contraste da serena tranquilidade das águas da baía de Sesimbra e aparece-me o nome do animal escrito com i (toiro) que é a letra luminosa por excelência.

Hoje que vivemos numa época posterior ao albatroz é difícil que se encontre muita gente que veja no que venho escrevendo mais alguma coisa que uma série de fantasias sem qualquer correspondência na realidade. Mas eu escrevo antes do desaparecimento do albatroz porque escrevo em saudade. A saudade põe estranhas relações entre as coisas. Ainda a propósito de touros e de touradas eu lembro-me de ter escrito n'O Sesimbrense (1972) um diálogo no qual pela primeira vez, creio eu, se estabelecia uma relação entre as zonas sísmicas e as zonas tauromáquicas. O espectáculo não era propriamente um espectáculo; era um ritual, em que se domavam as forças subterrâneas representadas no touro.

Esse mundo subterrâneo aparece hoje à superfície da terra cobrindo o globo a toda a volta. Basta pensarmos que pelas estradas de todo o mundo, de dia e de noite, correm incessantemente os automóveis, os jeeps, os camiões, por tal sorte que se interpõe entre a terra e os astros um autêntico corpo de metal, sempre em movimento pela força daquela substância tenebrosa que faz as guerras e os bancos.

Os homens, entretanto, vão-se entretendo com o futebol. Tu, deusa fantasia, que me estás mostrando a verdade, diz-me agora porquê o futebol e o desporto? Os antigos gregos associavam intimamente o desporto, de que eles são os grandes promotores, aos funerais. Quer dizer: durante os funerais, praticava-se atletismo e vários jogos então muito em voga, como, por exemplo, a luta. Julgavam que assim aplacavam a alma do morto, evitando ao mesmo tempo que os fantasmas saíssem, da terra a empecer os vivos.

A bom entendedor meia palavra basta. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)