VOZ PASSIVA. 54

19-05-2015 16:35

Do Rio de Janeiro, Carlos Francisco Moura, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, enviou-nos o número 104 do Círculo da Távola, uma publicação da sua autoria, onde, correspondendo ao repto que lhe lançáramos na Páscoa, evoca num dos artigos a presença dos portugueses em Brasília sob a égide de Agostinho da Silva, na segunda metade da década de 60, com importantes apontamentos históricos sobre os tempos conturbados da Ditadura Militar e a diáspora que Agostinho planeou perante a iminência da implosão do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses. Para além de difundirmos hoje, pelos endereços da nossa lista de correio electrónico, a referida publicação, publicamos aqui este escrito belíssimo de Carlos Francisco Moura, que supomos vir a ter continuação. Tal como João Ferreira, radicado em Brasília, Carlos Francisco Moura constitui, a partir do Rio, um dos elos do Projecto António Telmo. Vida e Obra com a memória de António Telmo e Agostinho da Silva no Brasil. São duas presenças que muito nos honram!  

[Carlos Francisco Moura, no Aeroporto de Brasília, em 1968]

 

Os escritores António Telmo e António Quadros e um bolsista do Brasil – 1

Carlos Francisco Moura

 

Conheci meu ilustre e saudoso Amigo António Telmo Vitorino quando entrei para o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da UnB em 1968.

E logo ele evidenciou seu espírito piadista e irônico.

Ao ser apresentado a ele pelo Diretor, Mestre Agostinho da Silva:

- Telmo este é o Moura, nosso novo colaborador no CBEP. Ele cumprimentou-me e disse:

- Moura você é um homem famoso.

Já desconfiado daquela afirmação descabida, disse:

- Não sabia. Como pode ser isso?

- Camões já cita você!

- Nos Lusíadas?

- Não, naquele poema:

“O dia em que eu nasci moura e pereça”.

A piada provocou o riso de todos os presentes, inclusive Mestre Agostinho.

A citação é do primeiro verso do famoso poema de Camões, baseado nas lamentações de Jó, contidas no Velho Testamento e a palavra

moura está por morra:

“O dia em que eu nasci morra e pereça”.

O Telmo dizia – O Moura é um positivista: só acredita nos documentos históricos. E sabendo que na época eu estava pesquisando o emprego de vidro nas construções antigas portuguesas, resolveu pregar-me uma peça. Comentou com um colega:

- O Moura anda à procura de documentos sobre o uso de vidraças em Portugal, e eu sei de um documento muito antigo, medieval que prova. Só me falta encontrá-lo.

Isso fez-me perder um tempo imenso a ver se encontrava o tal documento, até que, finalmente o Telmo disso rindo – era uma brincadeira. Não conheço nenhum documento mais antigo que os que você tem encontrado.

O Prof. Agostinho da Silva, que havia sido preso político em Portugal antes de vir para o Brasil, e por suas ideias libertárias e utópicas era visto com desconfiança pelo Regime Militar vigente. Com a invasão da UnB pelo exército e outras ameaças, ele reuniu os professores e disse:

- Do jeito que a coisa vai, o CBEP será implodido e, portanto, antes que isso aconteça, vamos organizar a diáspora.

E foi determinando o rumo que cada um deveria seguir. O Telmo, por exemplo, iria para a Espanha.

Deixou-me para o fim, e perguntou:

- Moura você tem dinheiro para a passagem de avião para Portugal?

- De ida, creio que sim, mas como vou manter-me lá, e dinheiro para a passagem de volta?

- Se tem para a ida, embarque logo. O resto a gente resolve depois. Desembarcado em Lisboa, siga para Évora, no Alentejo, e procure o Dr. Petronilho, na Câmara Municipal e o Dr. Armando Perdigão, na Junta Distrital. Lá a Câmara tem uma casa vazia no Jardim Infantil, que conseguimos pusessem à disposição dos bolsistas do Brasil. Você fica lá sem pagar aluguel, e, enquanto isso, procuramos obter uma bolsa da Fundação Gulbenkian, para você se instalar em Lisboa, pesquisar na Torre do Tombo, no Arquivo Histórico Ultramarino, na Biblioteca Nacional e em outras instituições, para prosseguir nas pesquisas iniciadas no CBEP.

Voltei a encontrar-me com o António Telmo em Portugal, e isso foi providencial. Percebendo que eu estava muito preocupado com a bolsa que não saía, ele procurava tranqüilizar-me:

- Fique calmo, tudo vai arranjar-se.

Levou-me de carro, juntamente com a esposa, Profª Maria Antónia Vitorino a várias regiões do interior de Portugal, inclusive a Vila Nova da Barquinha, próximo ao famoso Castelo de Almourol, que fica num rochedo no meio do Tejo.

Em Évora pesquisei vários artigos e consegui que fossem publicados em revistas de cultura de Évora e de Lisboa; não eram pagos, mas elas forneciam um bom número de separatas. Um deles foi Nagasáki, Cidade Portuguesa no Japão, publicado na revista STVDIA, da Junta de Investigação Científica do Ultramar.

Com o passar dos meses, e a bolsa sem sair, minha situação financeira se agravava. Sabedor do agravamento do problema, o Telmo apresentou uma idéia:

- Vá à Gulbenkian, e procure o Orlando Vitorino.

- Ele é seu amigo?

- Não sei se é, mas pelo menos é meu irmão – E deu uma gargalhada.

Depois pensou um pouco e disse:

- Melhor ainda. Vá à Gulbenkian e procure, da minha parte, o escritor António Quadros. Ele é diretor das Bibliotecas Itinerantes da Fundação, e certamente poderá adquirir para elas um bom número de suas separatas.