VOZ PASSIVA. 60

21-08-2015 00:02

O voo de Lúcio

Risoleta C. Pinto Pedro

 

No dia 21 de Agosto de 2010, António Telmo fazia uma radical descida ao “poço da alma”, para usar as suas palavras no texto “O Quarto Inimigo do Guerreiro”, in A Terra Prometida: Maçonaria, Kabbalah, Martinismo e V Império.

Poderíamos dizer que esta descida o conduziu ao Grande Oriente Eterno, mas detém-nos um pudor que tem a ver com uma sua convicção, ou pelo menos repetida afirmação, que poderíamos condensar numa passagem do mesmo referido texto:

“[...] o Jung, apesar do seu nome que parece chinês, está-me indicando que o caminho de um ocidental não é o do Oriente.”

Mesmo para um filósofo com olhos de oriental, que misteriosamente a vida ou, se quiserem a biologia, ou para outros, Deus, lhe terá dado, o caminho do Oriente não era o mais sedutor, ou o mais... iluminador. A sua escolha, o seu escol era o da lucidez, para lá das escolas, tendências ou modas. Era o escol do pensamento próprio.

Evidemente que o Oriente da Eternidade é outra coisa, ainda mais sendo um Oriente Grande. Na Eternidade o Grande Oriente terá de ser tão, mas tão grande, que lá caiba também o Ocidente e todos os outros pontos cardeais que sabemos e ainda mais os que existam para além do nosso conhecimento planetário.

Antes, no mesmo texto, escrevera este sempre jovem:

“Estou velho”. Isto comove-me. Faz-me mais pensar em algo como: “Estou cansado”

Há dias caiu-me no jardim, como em poço, um passarinho. Examinei-o, parecia íntegro, nem asas, nem patas mostravam qualquer mal. Deixei-o ficar aí um dia em gaiola, Lúcio pareceu-nos o nome perfeito para um ser caído do céu a fim de repousar ou iluminar-me ou mimar-me gaiola e jardim.

No dia seguinte, após vertiginoso voo rasante de chão, elevou-se no ar e voou.

Ao crepúsculo um bando de andorinhas cruzou vertiginosamente o céu do jardim em diversos sentidos e direcções e durante uns momentos o meu céu parecia um palco de caças em tempo de guerra. Mas era pela paz. Assim como apareceram, assim partiram. Anunciaram algo que ainda hoje desconheço. Mas não posso deixar de evocar outra afirmação do filósofo:

“Um dos sinais do Quinto Império é que ainda há andorinhas.“

Prefiro, por isso, pensar que a presumível derradeira queda de António Telmo no poço da alma, a mais grandiosa queda, a mais elevatória descida, é só uma pausa para descansar, íntegro, apenas poiso para este homem lúcido, antes do voo de Lúcio. Em direcção ao Grande Oriente. Eterno e como nenhum outro, interno. Tal como começa por ser o V Império, antes de se materializar.

Não se referem, os que o viram nos últimos tempos, antes da partida, a asas a necessitar conserto. Assim, partiu para pausa, descanso, novo voo. Como sempre, lúcido. Luminoso e hermético. Como muitos filósofos, é preciso descodificar o que diz, porque é portador de uma semântica própria. Traduzamos assim, sem receio, “velho” por “cansado” e “descer ao poço da alma”, “repousar antes de continuar”. Não faço ideia em que parte do caminho se encontrará, se já chegou, se já partiu novamente. Mas acredito que estará fascinado em mais uma invesigação do pensamento. Radical. Este corajoso pensador do transcendente que perto do final do caminho teve a coragem de se interrogar, como quem, à beira da obra completa, tudo abandona e recomeça tudo, do princípio: “se é que há alma e não só corpo.”.

Comove-me esta coragem, esta dúvida, esta verdade, esta grandeza de quem arrisca pôr em causa toda uma obra e todo um pensamento. Assim, pela verdade (Pelo amor. À verdade), a salvando, o salvando, se salvando, nos salvando.

 

20 de Agosto de 2015